domingo, 20 de fevereiro de 2011

Os donos da rua

Vias de BH, apesar de serem públicas, têm o acesso controlado e só moradores têm passagem livre. Mas há permissão da Prefeitura para fechar as ruas com cancelas e portões e colocar guaritas com vigilantes

Não tente entrar na Rua Alcides Pereira Lima, no Bairro Comiteco, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, sem carteira de identidade. E nem pense em ver o monumento que existe na Praça Sebastião Paes de Almeida, no Bairro Mangabeiras, também na Centro-Sul da capital, se não estiver com documentação. Esses lugares, assim como as ruas do Conjunto Habitacional Santos Dumont, no Bairro Carlos Prates, Região Noroeste, apesar de serem públicos, têm o acesso controlado. Só moradores têm passagem livre. São os "donos da rua", mas não estão irregulares. Têm permissão da Prefeitura para fechar as vias com cancelas e portões e colocar guaritas com vigilantes para verificar quem deve ou não se identificar. Em troca, ficam responsáveis pela conservação e manutenção do local. Em alguns casos, podem ter que fazer obra na cidade como contrapartida. Se é bom para eles e para a Prefeitura, a existência de bloqueios não agrada a vizinhança.


Ao chegar à Rua Alcides Pereira Lima, a reportagem se deparou com um portal com duas passagens - para quem entra e para quem sai. O local possui guarita com vigilância 24 horas por dia e cancelas. A equipe foi impedida de entrar com veículo no local. O segurança informou que só poderia autorizar pessoas a pé e que estava cumprindo ordens. Em seguida, pediu documento de identidade da repórter e do fotógrafo para que fizesse a reprodução por uma câmera.


Depois dos procedimentos exigidos, a equipe entrou. O motorista ficou do lado de fora com o carro. Dentro, a vista é de uma via deserta, arborizada, que termina na Serra do Curral. São três residências que ocupam todo o espaço. O lado direito, para quem está entrando, é tomado por uma única casa. Na parte esquerda, duas mansões. No meio da mata da serra, cercas com câmeras que vigiam a circulação de pessoas.


O representante da Associação dos Moradores da Rua Alcides Pereira Lima, Sebastião Bolleli de Souza, informou que houve erro na abordagem do segurança do local, que não poderia ter impedido a entrada do veículo. Segundo ele, o problema foi corrigido, e a empresa de vigilância foi informada, por ofício, que é autorizada a entrada no local, desde que a pessoa apresente a documentação. Segundo ele, as três famílias que tomam conta da rua hoje doaram equipamentos de incêndio para a brigada da Serra do Curral e cuidam da manutenção e conservação do espaço para terem o direito de controlar o acesso à via. "Todos os seguranças e vigias foram treinados para combater incêndios e já ajudaram em vários casos na Serra do Curral".


Um dos moradores da rua é o empresário Bruno Luciano Henriques, 39 anos. Segundo ele, foi pedida autorização para fechar a rua por questão de segurança. "Vinha muita gente para cá para namorar. Outros subiam para usar drogas. Tinha gente que provocava incêndio na serra", diz. De acordo com o empresário, a via não dá acesso a lugar nenhum e, por isso, a instalação do acesso controlado. "Dá uma segurança maior para a gente", destaca. Para Bruno Henriques, a medida foi melhor para todos porque a Prefeitura não precisa mais fazer manutenção no local. Ele acredita que não há desrespeito ao direito de ir e vir pelo fato de o acesso ser permitido após a identificação.

Mas a dona de casa Marilena Andrade, 70 anos, que mora no bairro, disse que já tentou entrar no local para ver como era e foi impedida. Para a psicóloga Sônia Macedo, 50 anos, que mora em rua próxima, as cancelas não incomodam. "Para quem mora lá, é bom, mas, para a gente, não faz diferença".


No Bairro Mangabeiras, em frente ao Minas Tênis Clube, existe outro portão com cancela. É na entrada do Bairro Mangabeiras III, mais conhecido como Clube dos Caçadores. No chão, duas inscrições: "visitantes" e "moradores". Quem mora no local passa livremente, mas os que são de fora têm que mostrar a identidade para os seguranças que ficam na guarita. Todo mundo pensa que a área é um condomínio fechado e, por isso, deixa de tentar entrar.

Assim, deixam também de saber que, lá, existe uma praça pública, a Sebastião Paes de Almeida, onde está fixado um totem feito pelo artista indígena canadense Francis Horne. Foi um presente do Governo do Canadá a Belo Horizonte pelo aniversário de cem anos, em 1997.


Na última terça-feira, por volta das 10 horas, quando a reportagem esteve no local, a praça estava vazia, embora tenha bancos para as pessoas sentarem e apreciar a vista da Serra do Curral. De acordo com o presidente da Associação dos Moradores do Bairro Mangabeiras III, José Diogo Braga, o local é muito frequentado, mas, ele alega que no horário em que a equipe esteve lá não ficam muitas pessoas.

Segundo Braga, o controle do acesso tem funcionado bem para os moradores. O presidente da associação lamenta apenas não poder proibir a entrada de veículos. "Não acho certo as pessoas entrarem aqui e deixarem os carros para a gente tomar conta", destaca. Apesar de ser contra, ele informa que a lei - que permite o acesso a qualquer pessoa, sem especificar o meio de transporte que está usando - está sendo cumprida.

Cancela questionada na Justiça


No entanto, a cancela no Clube dos Caçadores ainda é tema na Justiça. Existe uma ação popular, apresentada pelo advogado Bernardo Lopes Portugal e outras 12 pessoas, que tenta retirar a autorização dada pela Prefeitura para a instalação do acesso controlado. Segundo ele, há "aborrecimentos" para as pessoas que tentam entrar no local. "Quando vão de carro, têm que descer do veículo para ir à guarita se identificar", exemplifica.

De acordo com o advogado, o que motivou a ação popular foi o "absurdo jurídico de privatização do espaço público, sem justificativa legal, sem discussão com a comunidade, sem indenização". Segundo ele, a área tem equipamentos públicos, como poste e praça e mais de 400 vagas de estacionamento, que ficam sujeitas ao controle dos moradores locais.

O advogado que representa a ação popular, Mateus Almeida, informou que, em primeira instância, a decisão foi favorável aos que contestam a cancela. O processo está em revisão e pronto para ser apreciado em segunda instância. Segundo ele, a lei fez com que quatro ruas públicas e dez mil metros quadrados de área fossem privatizados em favor de 52 residências. "São famílias que não precisam de ajuda da Prefeitura para se proteger", diz. De acordo com o advogado, a permissão da cancela também infringe o direito constitucional de ir e vir e estabelece regras de condomínio fechado para uma área que não tem essa característica.

As opiniões de quem frequenta a região não são muito favoráveis aos moradores da área fechada. A aposentada Aparecida Marra, 72 anos, sócia do clube, diz que prefere não colocar o carro dentro da área porque a exigência da documentação faz com que se forme uma fila grande para entrar. "Achava que lá era condomínio fechado", diz. O servidor público André Cordeiro, 45 anos, afirma ser contra o fechamento. "Isso não existe", afirma. O advogado Rogério Baeta, 42 anos, tem a mesma opinião. "Isso é proibido, mas, no Brasil , não se respeita a lei".

No Conjunto Santos Dumont, no Carlos Prates, a existência de portões, cancelas e controle de circulação nas seis ruas que dão acesso ao local também é motivo de discussão. Moradores da Rua Riachuelo, que corta o conjunto, reclamam do cercamento. De acordo com a funcionária pública Renata Mendes Coelho, 39 anos, os portões são obstáculos para as pessoas. "Farmácia, padaria, supermercado. Tudo fica do outro lado. Para a gente chegar lá, tem que dar a volta em todo o conjunto, com morros pesados para subir", afirma. Segundo ela, quem não reside em um dos apartamentos ou é convidado pelos moradores não pode entrar. A comunidade do entorno do Santos Dumont fez um abaixo-assinado e entrou com processo na Prefeitura e na Justiça para tentar retirar os bloqueios.


O síndico geral do conjunto, Luiz Afonso Rosa de Oliveira, informou que os moradores da Rua Riachuelo não precisam pedir para reabrir a rua naquele ponto porque têm acesso para atravessar. "Não atrapalha em nada. Pelo contrário, dá mais segurança para quem está passando", diz. Segundo ele, só é pedida identificação de desconhecidos. O síndico informou que, para liberar a rua, seria necessário destruir uma praça que foi construída pelos condôminos. De acordo com Oliveira, o fechamento do conjunto foi necessário devido à ocorrência de atos de vandalismo e violência no local quando era aberto.


Outros dois conjuntos habitacionais de Belo Horizonte conseguiram decreto municipal que autoriza o acesso controlado às vias. Um fica no Bairro Horto e, o outro, no Gameleira. O do Horto, Waldemar Diniz Henriques, teve a permissão de controle da Rua Januário Laurindo Carneiro revogada pela Prefeitura. De acordo com a secretária Municipal de Regulação Urbana, Gina Rende, houve verificação posterior que demonstrou que havia duas entradas no local, o que contraria as características exigidas para que a cessão seja concedida. Mesmo assim, a briga dos moradores para fechar a área continua.


Eles entraram com ação na Justiça para tentar reaver o direito de fechar a rua. De acordo com a subsíndica do conjunto, Cinira Pereira dos Santos, o objetivo é reduzir a frequência de pessoas desconhecidas e de atos de violência. "Tem gente que rouba carro lá fora e põe aqui. Tem gente que entra para usar drogas", diz. Ela conta que houve um assalto próximo e ladrões foram para o local em fuga, perseguidos pela polícia. "Virou uma praça de guerra", lembra.


Um grupo de moradores das ruas Frederico Incalado e João de Queiroz, que são continuação da Januário Laurindo Carneiro pela lateral do conjunto, é contrário ao bloqueio. De acordo com o corretor de imóveis João Batista Tavares, que mora na Frederico Incalado, se for autorizado o fechamento, serviços públicos, como coleta de lixo, serão inviabilizados. "Não tem como um caminhão de lixo manobrar aqui".
João Tavares acredita que os moradores vão ficar encurralados sem a passagem. "Eles fecham para a segurança deles e atrapalham a nossa", afirma. Segundo o comerciante João Eustáquio de Queiroz, 63 anos, que mora na João de Queiroz, o processo foi arquivado com ganho de causa para o não bloqueio da via, mas os residentes do conjunto tentam reabrir com novas documentações. "Sou contra o fechamento de ruas em qualquer situação. A rua é pública", afirma.


No Gameleira, o conjunto que tem a autorização é o Henrique Silva Araújo. Porém, os acessos não estão fechados. A reportagem tentou contato com o síndico geral, José Lázaro, mas não conseguiu. Uma funcionária da portaria informou que as cancelas não foram colocadas porque não houve concordância de todos os moradores.


Direito se aplica apenas a ruas sem saída


O acesso controlado em ruas públicas é autorizado pela Lei 8.768/2004, resultado de um projeto de lei da ex-vereadora Neila Batista (PT). A ideia é que, em vias sem saída, possa ser instalado o mecanismo, desde que não seja proibida a passagem de pessoas. A lei autoriza a exigência de identificação para que um cidadão possa transitar pelo local.


A ex-vereadora informou que, depois da sanção da lei e diante dos problemas gerados por causa da legislação, apresentou outro projeto de lei para tentar revogar a 8.678. No entanto, a legislatura anterior terminou, e o projeto foi arquivado por não ter sido votado. Só voltaria à tramitação se outro vereador o reapresentasse, o que não aconteceu. "Houve confusão e muitas pessoas entenderam que era apropriação privada do espaço público. Se estava provocando tanto incômodo, tentamos revogar", observa. Ela contou que entrou com a primeira proposta para atender conjuntos habitacionais, que ficavam prejudicados pela escassez de serviços públicos. Assim, poderiam assumir a manutenção dos locais. "A intenção era totalmente outra", afirma. Para Neila Batista, a lei não se aplicaria em áreas nobres, que passam a ter condição de condomínio fechado.


Apesar de ter cinco decretos publicados autorizando o fechamento das ruas e ter demanda de áreas que desejam ter a mesma permissão, a Prefeitura demonstrou ter total descontrole sobre o assunto. A reportagem procurou secretarias e órgãos municipais, durante toda a semana, para saber quem responde sobre o tema, mas constatou que, hoje, essa figura não existe.


Os decretos foram assinados em 2004 e 2007 pelo prefeito e os responsáveis pelas secretarias de Governo e Administração e Recursos Humanos na época. De acordo com a secretária Gina Rende, as regionais são responsáveis por fiscalizar o cumprimento das contrapartidas determinadas pelo decreto. Mas a Regional Centro-Sul informou, por meio da assessoria de imprensa, que não tem atribuições ligadas às ruas com cancelas.


Para o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG), Mário Lúcio Quintão, o fechamento das ruas fere a liberdade de circulação das pessoas e é uma forma de discriminação. Além disso, observa que a rua é um bem inalienável, que não poderia ser cedido ao uso privado.


A professora de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UFMG, Mariá Brochado, acredita que a lei não tem elementos que ferem a Constituição. "A concessão do direito real de uso é uma forma de o governo economizar, já que os moradores é que vão ficar responsáveis pela conservação dos espaços", diz.

http://www.hojeemdia.com.br/cmlink/hoje-em-dia/minas/os-donos-da-rua-1.40827

Um comentário:

  1. Essa reportagem é um exemplo da influência direta que o poder público e os grupos dominantes exercem sobre os espaços urbanos. Contradizendo o significado de espaço público que deveria ser um local acessível a todos para o convívio e lazer, atualmente a privatização dos mesmos deixou de ser uma ação irregular e passou a ser uma alternativa para solucionar o problema da violência no meio urbano, no qual através de uma "troca de favores" entre a prefeitura e os grupos dominantes permite-se a apropriação privada dos espaços públicos.

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